Segundo acadêmicos, docentes e coordenadores de escolas, o caminho ideal é o híbrido. Governo de São Paulo anunciou, nesta semana, que adotará apenas livros didáticos digitais no ensino fundamental II.
Não há experiência internacional, estudo ou entidade que apoie a decisão de eliminar os livros da sala de aula e oferecer apenas conteúdo informatizado. A recente decisão do governo de São Paulo de fornecer aos alunos do ensino fundamental II e do ensino médio apenas material didático digital, desenvolvido por seus próprios técnicos estaduais, é amplamente criticada por acadêmicos e entidades, que acompanham o tema com preocupação.
É unânime a posição de especialistas que o desafio de formar as futuras gerações exige a adoção de um esquema híbrido, que integre as vantagens do analógico e do digital. E essa mistura precisa ser gradual, acompanhada de adaptações na infraestrutura das escolas, na formação docente e nas propostas pedagógicas.
A razão para a crítica contundente à decisão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) passa por justificativas como o exemplo da Suécia (que adotou a digitalização completa e agora decidiu recuar), pelo mais recente relatório da Unesco (que sugere banir os celulares da sala de aula) e chega ao rescaldo recente da pandemia, quando a falta de estrutura tecnológica das escolas e dos lares das famílias ficou evidente.
O diretor executivo da ONG Todos Pela Educação, Olavo Nogueira Filho, afirma que dados e evidências sugerem muita cautela na adoção do digital.
Paulo Blikstein, especialista no uso da tecnologia para a aprendizagem e diretor do Transformative Learning Technologies Lab, na Universidade de Columbia (EUA), explica ainda que não é uma questão de “vilanizar” a tecnologia.
“Não queremos descartar o digital, mas não é possível impor esse sistema rapidamente. Precisa haver um processo de adequação à realidade.”
Entenda abaixo como os seguintes aspectos devem ser levados em conta quando uma rede (ou colégio) adota o material informatizado:
Falta de infraestrutura tecnológica nas escola
- O ensino remoto na pandemia de Covid-19 escancarou a desigualdade entre alunos da rede pública e da rede privada no acesso à internet.
- Um exemplo: das escolas municipais brasileiras de ensino fundamental, 38% dispõem de computador de mesa, 23,8% contam com computadores portáteis, 52% têm internet banda larga e 23,8% oferecem internet para uso dos estudantes, segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) de 2022.
- Segundo a Unesco, 1 em cada 4 escolas de anos iniciais do ensino fundamental do mundo não tem eletricidade.
“O mais grave de adotar o ensino 100% digital é que isso coloca o aluno que é mais vulnerável, que está em situação de risco, que não tem uma boa conexão de internet, em uma situação ainda mais difícil, sem livros, apenas com essas opções digitais que ainda não foram testadas. É um sistema que pode precarizar o ensino justamente para quem mais precisa de educação“, diz Blikstein, da Universidade de Columbia.
E não basta oferecer tablets e notebooks para os alunos usarem no colégio. É preciso garantir que a rede de Wi-Fi suporte o acesso simultâneo de centenas de alunos, por exemplo, e que eles tenham condição de fazer atividades on-line em casa.
Computador quebrou? Alguém precisará consertá-lo
Na Móbile, escola privada de São Paulo, o processo de alfabetização é, em parte, digital, com atividades em tablets de até 10 minutos por dia.
A diretora da educação infantil, Maria de Remédios Cardoso, conta que, por causa disso, passou a ser necessário ter um departamento de tecnologia educacional “dentro da escola, o tempo todo”.
O Colégio Anchieta, da Rede Jesuíta de Educação de Porto Alegre, por exemplo, enfrentou outro desafio ao adotar os livros digitais (os físicos continuam como opção para os alunos que os preferirem): investir em um acesso seguro à rede de internet. “Tem de haver login com senha, para que haja integridade e privacidade dos dados dos alunos”, afirma o coordenador Cleiton Gretzler.
Uso excessivo de telas
Por orientação da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), o contato com telas não pode ultrapassar os seguintes limites, a cada faixa etária:
- dos 2 aos 5 anos: até 1 hora por dia;
- dos 6 aos 10 anos: entre 1 e 2 horas por dia;
- dos 11 aos 18 anos: entre 2 e 3 horas por dia.
Especialistas demonstraram preocupação com o uso de livros digitais, porque, associados ao tempo de lazer que as crianças já dedicam a tablets, podem gerar uma superexposição à tecnologia.
A Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, já mostrou que esse excesso leva a:
- prejuízos na comunicação,
- problemas no sono e
- atrasos no desenvolvimento cognitivo.
Por evidências como essas, Neide Noffs, da PUC-SP, defende que os livros físicos estejam sempre presentes. “Eles fazem com que o aluno vá até a biblioteca, leia uma revista, entre em contato com diferentes dispositivos de leitura. São experiências que vão além de só ‘ler'”, afirma.
Prejuízos pedagógicos: mais tela, menos concentração?
Katia Smole, diretora do Instituto Reúna, afirma que pesquisas mostram possíveis prejuízos na capacidade de leitura de quem usa apenas telas (em vez de um esquema misto)
Um exemplo: em um estudo da Universidade de Stavanger, na Noruega, em 2012, cientistas compararam estudantes que leram textos apenas no formato digital com outros que leram os mesmos conteúdos, só que em papéis impressos. Eles constataram que o primeiro grupo teve um desempenho inferior ao segundo.
Outro estudo, publicado no “The Journal of Experimental Education” em 2017, constatou que os alunos até preferiram, inicialmente, a experiência do digital. Mas, quando testados, mostraram que compreenderam melhor o conteúdo do meio impresso.
Antonio Rosso Júnior, professor do Insper (SP) e autor de materiais didáticos, explica que o uso de telas para leitura exige certa maturidade do aluno. “Apesar de as novas gerações serem digitais desde cedo, precisam aprender a diferenciar o lazer da hora de aprender. No ensino fundamental, vejo com ressalvas que o tablet seja ‘lugar’ tanto de estudo quanto de diversão.”
TECNOLOGIA PODE SER ALIADA
“Aquela situação de material exclusivamente físico, sem suporte do uso de computador e de tablets, não faz mais sentido no século XXI. A questão é: em que medida usar?”, questiona Rosso.
Veja quais vantagens existem no uso da tecnologia:
Possibilidade de melhor compreensão do conteúdo
Olhando para os aspectos positivos de haver materiais digitais, especialistas mencionam a possibilidade de mostrar vídeos, gráficos e recursos de inteligência artificial para que o aluno compreenda melhor o conteúdo.
Avaliação mais ágil
Usando a tecnologia e em parceria com EdTechs (startups de educação), professores podem corrigir as atividades com mais agilidade, conta Gretzler, coordenador do Colégio Anchieta.
“O sistema permite uma análise de dados mais abrangente, para verificar o progresso dos estudantes na aprendizagem. Possibilita também, em alguns momentos, a personalização [do ensino], levando em conta o ritmo individual de cada aluno”, explica.
Democratização do conteúdo para acesso de pessoas com deficiência
Livros digitais têm uma vantagem em relação aos impressos: podem usar recursos de acessibilidade que facilitam a leitura para crianças com deficiência (como cegueira). Há softwares que reproduzem, em áudio, o que está escrito na tela, por exemplo, ou que aumentam o tamanho das letras para quem tem baixa visão.
Menos peso na mochila e sem risco de esquecimento
O coordenador Gretzler, pela experiência com ensino digital no colégio, conta que os alunos passam a carregar menos peso na mochila quando optam pelos e-books. Também aponta outra vantagem: uma “redução de danos” para quem não se lembra de levar o material todo dia.
“Como exemplo prático, durante o 1º trimestre de 2023, tivemos 869 registros de ocorrências de alunos que não trouxeram o único livro físico que ainda usamos na escola (Línguas Estrangeiras Modernas). Em contraposição, apenas 106 alunos não trouxeram o Chromebook, que engloba seis componentes curriculares”, conta.